O relatório Justiça em Números de 2018, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aponta a existência de mais de 80 milhões de processos em tramitação. Uma das iniciativas do legislador para enfrentar o alto grau de litigiosidade no Brasil foi a edição, ainda em 1995, da Lei 9.099, que disciplinou os juizados especiais cíveis e criminais.
Os juizados especiais foram criados para dar celeridade à Justiça e promover a economia processual. O artigo 2º da lei especifica que, sempre que possível, o juizado especial deve buscar a conciliação ou a transação.
Um dos mecanismos à disposição das partes é a suspensão condicional do processo – o chamado sursis processual –, uma forma alternativa de solução para questões penais. A suspensão possibilita a extinção da punibilidade e não gera antecedentes criminais.
Segundo a legislação, o sursis processual é admitido nos crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano – delitos de baixa gravidade e periculosidade, portanto. Mas nem sempre essa solução alternativa é aplicável.
Outros crimes
Uma das situações que inviabilizam a suspensão do processo é o fato de o réu estar envolvido em outros delitos. Em 2013, ao julgar o Recurso Especial 1.154.263, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento do tribunal de que, conforme previsto na Lei 9.099/1995, não cabe a concessão do sursis processual se o acusado, no momento do oferecimento da denúncia, responde a outra ação penal, mesmo que esta venha a ser posteriormente suspensa.
No caso analisado, o réu era investigado no âmbito da CPI da Bola, comissão que investigou ilegalidades na gestão da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e na organização de campeonatos no país.
A defesa pediu o envio do caso para que, com base no artigo 89 da Lei dos Juizados Especiais, o Ministério Público pudesse analisar o pleito de suspensão condicional do processo.
O ministro Sebastião Reis Júnior considerou que esse pedido não tinha amparo legal, pois “o momento de propositura da suspensão condicional do processo é aquele no qual o agente ministerial oferece a denúncia. Nessa fase processual, portanto, é que se deve avaliar a presença dos requisitos exigidos pelo artigo 89 da Lei 9.099/1995”.
O mesmo entendimento foi adotado pela Quinta Turma em 2011, ao analisar o Agravo de Instrumento 1.386.813. Na ocasião, a ministra Laurita Vaz afirmou que não há direito automático do acusado à suspensão do processo.
Referindo-se ao momento do oferecimento da denúncia, a ministra declarou que “não tem direito ao benefício o acusado que, nessa oportunidade, responde a outro processo criminal, mesmo que este venha a ser posteriormente suspenso”.
Marco temporal
O STJ entende que é inviável a concessão do benefício após a prolação da sentença, em razão da preclusão.
Em 2012, a Quinta Turma julgou um caso em que o acusado reunia as condições para a suspensão do processo, mas tal medida não foi oferecida pelo MP no momento da denúncia, e a defesa somente levantou a questão por meio de embargos de declaração após a sentença condenatória.
Relator do Habeas Corpus 139.670, o ministro Jorge Mussi afirmou que o pedido de suspensão é inadmissível em tais situações: “Não tendo a defesa questionado o não oferecimento do benefício previsto no artigo 89 da Lei 9.099/1995 oportunamente, ou seja, antes de proferida sentença condenatória em seu desfavor, na conformidade com o artigo 571, II, do Código de Processo Penal, resta referida nulidade acobertada pelo manto da preclusão”.
O mesmo entendimento foi exposto pela Quinta Turma em 2016, por ocasião do julgamento do REsp 1.611.709, relatado pelo ministro Felix Fischer.
Em 2006, o STJ já se posicionava no mesmo sentido quanto à impossibilidade da suspensão condicional do processo após a sentença condenatória. O ministro Arnaldo Esteves Lima, hoje aposentado, disse no HC 67.011 que “não é razoável desconstituir a sentença para que o Ministério Público possa oferecer o benefício”, no caso específico de um pedido feito dois anos após a condenação do réu a um ano de reclusão pelo crime de receptação.
Arnaldo Esteves Lima citou na ocasião entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) pela inviabilidade da concessão do benefício após a prolação de sentença.
Maria da Penha
Outra circunstância que impede o sursis são as infrações relacionadas à Lei Maria da Penha. A jurisprudência do STJ, na mesma linha do STF, foi resumida pela Terceira Seção com a edição da Súmula 536.
Em um dos casos que levaram à consolidação desse entendimento, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul solicitou a suspensão do processo por considerar que o artigo 41 da Lei Maria da Penha não vedaria a concessão do benefício quando se tratasse de contravenção penal.
No caso analisado, o réu agrediu sua companheira com tapas e a empurrou contra a parede. Ele foi condenado a prisão simples, no regime aberto, e o magistrado de primeira instância substituiu a sanção por uma pena restritiva de direitos. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul concedeu, com base no artigo 77 do Código Penal, a suspensão da execução da pena. No STJ, a defesa buscou ir além, com o pedido de suspensão condicional do processo.
Segundo o ministro Og Fernandes – relator do HC 196.253 –, nem a transação penal, tampouco a suspensão condicional do processo, são possíveis nos delitos tipificados na Lei Maria da Penha. O ministro citou a Súmula 536 e disse que esse é o entendimento pacífico tanto no STJ quanto no STF.
O precedente mais antigo entre os que embasaram a súmula foi o HC 173.426, de dezembro de 2010. Na ocasião, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho (na Quinta Turma à época) ressaltou que “o artigo 41 da Lei Maria da Penha afastou a incidência da Lei 9.099/1995 quanto aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, o que acarreta a impossibilidade de aplicação dos institutos despenalizadores nela previstos, como a suspensão condicional do processo”.
Naquele julgamento, a defesa alegava que o instituto do sursis processual não seria uma forma de aviltar a ampla proteção à mulher prevista na Lei Maria da Penha. No entanto, segundo Napoleão Nunes Maia Filho, o artigo 41 da lei afastou “taxativamente” a incidência dos benefícios previstos na Lei dos Juizados Especiais, incluindo a suspensão condicional do processo.
Argumentação semelhante foi utilizada pelo recorrente no HC 203.374. Nesse caso, o relator, ministro Jorge Mussi, lembrou que o STF já decidiu que o artigo 41 da Lei Maria da Penha é constitucional.
Mais de um crime
Em dezembro de 2000, a Corte Especial aprovou a Súmula 243, segundo a qual o benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada – seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante – ultrapassar o limite de um ano.
Um dos precedentes mais antigos para a edição da súmula foi o Recurso em Habeas Corpus 7.779, de outubro de 1998. O ministro Felix Fischer, relator, afirmou que a majorante do crime continuado deve ser levada em conta para fins de aplicação da suspensão condicional.
“A carga de reprovação – ainda que, repetindo, provisória – em relação a um injusto não pode ser nivelada com a de dois ou mais. Seria, axiologicamente, igualar o que – em qualquer grau de conhecimento – é desigual. É o mesmo que asseverar que ‘tanto faz’ um como 20 crimes. O escape, por outro lado, para as condições subjetivas, data venia, é propiciar um subjetivismo que pode acarretar situação totalmente alheia ao controle judicial”, declarou Fischer.
Revogação
O sursis processual pode ser revogado em certas circunstâncias – por exemplo, se o acusado descumprir as condições impostas ou passar a ser processado por outro crime no curso do prazo da suspensão.
No julgamento do HC 143.887, em setembro de 2013, o ministro Og Fernandes lembrou que a suspensão não gera automaticamente a extinção da punibilidade, sendo possível a revogação do benefício ante o descumprimento das condições impostas
“O término do período de prova sem revogação do sursis processual não enseja, automaticamente, a decretação da extinção da punibilidade, que somente tem lugar após certificado que o acusado cumpriu as obrigações estabelecidas e não veio a ser denunciado por novo delito durante a fase probatória”, fundamentou o ministro ao destacar que tal entendimento já era pacífico no tribunal na data do julgamento.
“Assim, não há se falar em extinção da punibilidade, diante da constatação de que o acusado não cumpriu as determinações do juízo para a concessão do benefício”, concluiu Og Fernandes.
Em outro julgamento, no RHC 39.396, o ministro Jorge Mussi diferenciou as possibilidades de revogação do benefício.
“Verifica-se que há duas situações em que a revogação do sursis processual é obrigatória (beneficiário processado por outro crime no decorrer do período de prova e ausência de reparação do dano sem motivo justificado), e duas em que é facultativa (acusado processado por contravenção penal no curso do prazo e descumprimento de qualquer outra condição estabelecida)”, explicou.
No caso julgado, o benefício foi cassado porque o acusado passou a responder por outro crime durante o período da suspensão condicional – situação essa, segundo Mussi, “que constitui causa de revogação obrigatória do benefício”.
Em 2012, durante o julgamento do REsp 1.304.912, a Sexta Turma destacou que, ao contrário da pretensão da defesa, o término do período de prova – sem revogação do sursis – não induz, necessariamente, a decretação da extinção da punibilidade.
O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, afirmou que tal medida “somente tem lugar após certificado que o acusado cumpriu as obrigações estabelecidas e não veio a ser denunciado por novo delito durante a fase probatória”. O ministro disse que o entendimento é pacífico no STJ e também acompanha a posição do STF desde 2010.
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