​​​Muito além da origem na Constituição de 1988 e do tempo de existência em comum, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) – que completou 30 anos nesta sexta-feira (11) – estão vinculados pela própria matéria legislativa. O direito do consumidor é um tema muito presente na pauta do tribunal, que tem interpretado e revisitado o código em inúmeros julgamentos ao longo dessas três décadas – período em que as relações de consumo também se modificaram profundamente.

Se, nos anos 1990, o brasileiro dependia de meios físicos para suas transações – como cédulas de dinheiro, cheques e notas promissórias –, a partir dos anos 2000, os sistemas de pagamento eletrônicos – com destaque especial para os cartões de crédito – ganharam definitivamente o gosto e o bolso dos consumidores.

Com o advento da internet, as relações de consumo se alteraram radicalmente e as pessoas começaram a utilizar computadores, tablets e celulares para realizar grande parte das atividades de consumo, como compras em sites e pedidos de comida por aplicativos de smartphone. Até a compra de supermercado não é mais a mesma: dos carrinhos de ferro, passamos aos carrinhos de compra virtuais na hora de fazer a feira da semana. 

Com o ambiente tão drasticamente atingido pela revolução digital, como um código nascido em 1990 poderia continuar regulando satisfatoriamente as relações de consumo? Esse é um desafio que se impõe ao STJ: interpretar e aplicar a lei às relações – e aos conflitos – dos novos tempos.

“O CDC representa um dos mais importantes marcos históricos no sistema de proteção dos consumidores brasileiros, estabelecendo conceitos claros, garantindo direitos e definindo responsabilidades. Tão relevante quanto seu papel nos últimos 30 anos é a necessidade de mantê-lo atualizado e próximo das novas relações de consumo do mundo moderno – papel que o STJ tem cumprido com empenho, prudência e sabedoria. STJ de mãos dadas com a cidadania​”, afirmou o presidente do tribunal, ministro Humberto Martins.

A era dos ch​​​eques

Durante a primeira década, muitos julgamentos do STJ envolviam a discussão sobre a sujeição ou não dos litigantes ao CDC e sobre a própria aplicabilidade de suas normas a contratos de consumo firmados antes do código – hipótese em geral afastada pelo tribunal, como em precedente de 1993, o REsp 36.455, relatado pelo ministro Eduardo Ribeiro na Terceira Turma.

Em julgamento realizado em 1995, a Quarta Turma, sob relatoria do ministro Ruy Rosado, rechaçou a tese de um banco sobre a sua não submissão às regras do CDC no âmbito de ação revisional de contrato (REsp 57.974).

Posteriormente, a orientação sobre a aplicabilidade do código em relação às instituições financeiras foi consolidada na Súmula 297, editada em 2004 pela Segunda Seção.​

Muitos dos litígios analisados pelo STJ nos primeiros anos do CDC também estavam relacionados aos meios de pagamento mais utilizados à época, como os cheques. No vocabulário do consumidor brasileiro, expressões como “bom para”, “endosso” e “cheque cruzado” eram corriqueiras – mas poderiam soar estranhas para os jovens de hoje. 

Em 2000, por exemplo, ao analisar caso de extravio de cheque dentro das dependências de um banco, a Terceira Turma definiu que a instituição financeira deveria ocupar o polo passivo da ação de indenização proposta pelo cliente – não em substituição ao devedor original do cheque, mas para responder pelo ressarcimento decorrente da prática de ato danoso.

“Se aplicada a regra geral da responsabilidade civil, não se afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor neste feito, porque indiscutível a relação de consumo”, destacou no julgamento o ministro Menezes Direito (REsp 238.016). “No caso dos depósitos em conta-corrente e, mais especificamente, no caso do serviço de desconto de título, como no presente feito, há um contrato claro de serviços, uma verdadeira relação de consumo, devidamente remunerado pelo correntista, preenchendo os requisitos do parágrafo 2º do artigo 3º do CDC”, acrescentou.

Mais tarde, em 2005, a Terceira Turma estabeleceu que o banco é responsável por entregar o talão de cheques ao correntista de forma segura – motivo pelo qual, ao optar por terceirizar esse serviço, ele assume a responsabilidade por eventual defeito em sua prestação. O relator do recurso, ministro Castro Filho, apontou que a responsabilidade ocorre não apenas pela chamada culpa in eligendo, mas também pela caracterização de defeito do serviço, conforme o disposto no artigo 14 do CDC (REsp 640.196).   

Do tal​ão ao cartão

Em 2004, o Brasil viu as transações realizadas por meio de cartões de crédito superarem, pela primeira vez, o uso de cheques. Ao lado de vantagens como praticidade e segurança, os cartões trouxeram novas questões para debate na Justiça. Naquele ano, no REsp 514.358, a Quarta Turma do STJ analisou o caso de um banco que remeteu à cliente cartão de crédito não solicitado por ela. A cliente devolveu o cartão, mas a correspondência foi extraviada, e o cartão foi utilizado por terceiros em estabelecimentos comerciais, gerando a inscrição da consumidora em cadastros restritivos de crédito.

No STJ, o banco discutiu sua responsabilidade pelo pagamento de indenização por danos morais à cliente, mas o relator do recurso, ministro Aldir Passarinho Júnior, ressaltou que a prática de envio de cartões por estabelecimentos bancários, embora comum, era ilegal, já que estava vedada peloartigo 39, inciso III, do CDC.

“Portanto, se a partir desse ato ilícito se desenrolaram outros acontecimentos, como a devolução do cartão ao banco, o extravio e o uso por terceiros em estabelecimentos comerciais, a responsabilidade é do banco, ao menos preferencialmente”, afirmou o ministro. O reconhecimento do caráter abusivo do envio de cartões sem solicitação do cliente foi, mais tarde, consolidado na Súmula 532do STJ.

Também em 2004 – e novamente sob a relatoria do ministro Aldir Passarinho Júnior –, a Segunda Seção fixou as teses de que as administradoras de cartões de crédito estão inseridas entre as instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional e que aos contratos de cartão de crédito não se aplica a limitação de juros de 12% ao ano, prevista na Lei de Usura (REsp 450.453).

Ainda no mesmo ano, a Quarta Turma decidiu que cabia exclusivamente à Serasa a responsabilidade pela indenização por danos morais em virtude da ausência de comunicação ao devedor sobre sua inscrição em cadastro negativo, mesmo que o fato tenha sido consequência de um lançamento em cartão de crédito já cancelado pelo consumidor um mês antes (REsp 595.170).

Em precedente mais recente, de 2011, a Terceira Turma estabeleceu que são nulas as cláusulas contratuais que impõem exclusivamente ao consumidor a responsabilidade por compras feitas com cartão furtado ou roubado, até o momento da comunicação do fato à administradora.

Segundo a ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp 1.058.221, cabe às administradoras – em parceria com as outras empresas da cadeia de fornecedores do serviço, como as proprietárias das bandeiras e os estabelecimentos comerciais – verificar a idoneidade das compras feitas com cartões magnéticos, “utilizando-se de meios que dificultem ou impossibilitem fraudes e transações realizadas por estranhos em nome de seus clientes, independentemente de qualquer ato do consumidor, tenha ou não ocorrido roubo ou furto”.

Compras na palma ​​da mão

Com funcionamento comercial no Brasil a partir de 1994 – mas com consolidação em termos de abrangência e de utilização em dispositivos móveis muito mais recente –, a internet não substituiu os sistemas de pagamento anteriores, mas foi responsável pela introdução de novos, a exemplo das transferências eletrônicas e dos pagamentos digitais instantâneos, que dispensam intermediação.

O ambiente é ainda de convivência entre meios antigos e sistemas eletrônicos modernos, apesar de uma crescente preferência dos consumidores por estes últimos. Na realidade, no âmbito das relações de consumo, a mudança mais aparente trazida pela internet é o local de realização do negócio, que recebeu um enorme incremento de horizontes, opções e abrangência no sistema e-commerce.   

Mais uma vez, ao lado das facilidades geradas pelo sistema de consumo virtual, novos conflitos surgiram e aportaram no Judiciário – como a discussão sobre a cobrança de taxa de conveniência na venda de ingressos para espetáculos culturais pela internet.

O caso foi julgado em 2019 pela Terceira Turma, que concluiu haver abuso nesse tipo de cobrança, em razão da configuração de venda casada indireta. De acordo com a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, a venda casada – vedada pelo artigo 39, inciso I, do CDC – ocorre quando o fornecedor obriga o consumidor, na compra de um produto, a levar outro que não deseje, apenas para ter direito ao primeiro.

A ministra lembrou que o inciso IX do artigo 39 considera abusiva a imposição, pelo vendedor, da contratação indesejada de um intermediário escolhido por ele, cuja participação na relação negocial não é obrigatória.

Nancy Andrighi destacou que a oferta de ingressos pela internet alcança um público “infinitamente superior” ao do modelo de venda presencial, privilegiando o interesse dos produtores do espetáculo cultural em vender os espaços no menor prazo possível.

Por outro lado, apontou, o consumidor que não adquire o bilhete em meio virtual é obrigado a se deslocar até os locais de venda físicos – caso existam –, correndo o risco de descobrir que tudo foi vendido digitalmente.

“A potencial vantagem do consumidor em adquirir ingressos sem se deslocar de sua residência fica totalmente aplacada pelo fato de ser obrigado a se submeter às condições impostas pela recorrida no momento da contratação, entre elas o valor da taxa, o que evidencia, mais uma vez, que a principal vantagem desse modelo de negócio – disponibilização de ingressos na internet – não foi instituída em seu favor”, enfatizou a relatora ao considerar abusiva a taxa de conveniência (REsp 1.737.428).

Comprou, mas não​​​ chegou

Outra situação corriqueira no mercado de consumo virtual é a compra de um produto e a ingrata constatação de que ele nunca chegará, pois não foi enviado pela loja on-line. Entretanto, caso o cliente tenha sido levado à loja virtual por meio de um buscador de produtos, esse site intermediário também é responsável pela reparação do dano?

A situação foi analisada em 2016 pela Terceira Turma, que concluiu que o provedor de busca de produtos que não realiza intermediação entre consumidor e vendedor não pode ser responsabilizado por qualquer vício da mercadoria ou inadimplemento contratual.

No julgamento, a ministra Nancy Andrighi estabeleceu uma diferenciação entre os provedores de busca que oferecem toda a estrutura virtual para que a compra seja realizada – e, assim, o provedor passa a fazer parte da cadeia de fornecimento, nos termos do artigo 7º do CDC – e aqueles que se limitam a apresentar ao consumidor o resultado da pesquisa, sem participar da interação virtual que resultará na compra.

“O provedor do serviço de busca de produtos – que não realiza qualquer intermediação entre consumidor e vendedor – não pode ser responsabilizado pela existência de lojas virtuais que não cumprem os contratos eletrônicos ou que cometem fraudes contra os consumidores, da mesma forma que os buscadores de conteúdo na internet não podem ser responsabilizados por todo e qualquer conteúdo ilegal disponível na rede”, concluiu a ministra (REsp 1.444.008).

A evolução con​tinua

Se as operações por meio de cheques e cartões e as compras via internet podem ser consideradas transitórias – porque novos modelos surgirão –, o consumo é da natureza humana e seguirá se adaptando e evoluindo.  

Por isso, o Código de Defesa do Consumidor continuará sendo confrontado com novas realidades nos próximos 30 anos, e o STJ, de igual modo, terá que dar novas respostas aos futuros litígios envolvendo consumidores, fornecedores e qualquer que seja o mecanismo dessa relação.

Novos entendimentos têm sido firmados o tempo todo para dar ao CDC aplicação equilibrada e coerente com o ordenamento jurídico. No REsp 1.412.993, julgado em 2018, a Quarta Turma acompanhou o voto da ministra Isabel Gallotti para definir que a previsão de multa contra o consumidor que atrasa o pagamento da fatura de cartão de crédito não autoriza a inversão dessa cláusula penal contra o fornecedor que, nas vendas pela internet, atrasa a entrega do produto ou demora a restituir o valor após o exercício do arrependimento.

De acordo com a ministra, nesse tipo de venda, o fornecedor envia a mercadoria só após a confirmação do pagamento pela operadora do cartão, de modo que não há previsão de penalidade contra o consumidor na sua relação com a empresa vendedora. A multa pelo atraso na quitação da fatura do cartão faz parte, isso sim, do contrato entre o consumidor e a operadora.

Em 2020, a Terceira Turma concluiu, ao julgar o REsp 1.794.991, sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, que o princípio da vinculação da oferta não devia ser aplicado em um caso no qual, por erro grosseiro de sistema, foi informado aos consumidores um preço de passagem aérea baixíssimo, totalmente fora do mercado. Para a ministra, o cancelamento da reserva pela empresa – que comunicou o erro aos consumidores, não tendo havido nem sequer o débito do valor da compra no cartão – não configurou falha na prestação do serviço.

Entre os cheques de papel e os checkouts na conclusão das compras virtuais, muitos outros desafios na interpretação do direito consumerista estão por vir.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 36455REsp 57974REsp 238016REsp 640196REsp 514358REsp 450453REsp 595170REsp 1058221REsp 1737428REsp 1444008REsp 1412993REsp 1794991

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