A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento, por maioria, ao recurso do Ministério Público Federal (MPF) que questionava o trancamento de ação penal contra seis agentes do Exército acusados de envolvimento no atentado do Riocentro, alegando tratar-se de crime contra a humanidade.
O julgamento, iniciado em 28 de agosto, foi retomado nesta quarta-feira (25) com a apresentação do voto-vista do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que divergiu do relator do processo, ministro Rogerio Schietti Cruz. De acordo com o voto divergente, não é possível considerar que os fatos narrados se insiram na categoria de crime contra a humanidade, uma vez que o MPF não apontou violação de dispositivo legal que pudesse caracterizar lesa-humanidade.
“Em observância aos princípios constitucionais penais, não é possível tipificar uma conduta praticada no Brasil como crime contra a humanidade, sem prévia lei que o defina, nem é possível retirar a eficácia das normas que disciplinam a prescrição, sob pena de se violar o princípio da legalidade e o da irretroatividade, tão caros ao direito penal”, afirmou Reynaldo Soares da Fonseca.
TRF2
O caso, ocorrido no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, foi uma tentativa fracassada de ataque a bomba durante um show comemorativo do Dia do Trabalhador, que reuniu mais de 20 mil pessoas no Centro de Convenções do Riocentro na noite de 30 de abril de 1981. Segundo o MPF, a ação, intentada por militares, buscava a criação de um clima de medo na sociedade para justificar o recrudescimento da ditadura, que já estava em processo de abertura política.
Após o recebimento de denúncia do MPF em primeira instância contra os agentes supostamente envolvidos no atentado, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) concedeu habeas corpus para trancar a ação penal, por considerar extinta a punibilidade pela prescrição. Para o TRF2, os atos foram praticados cladestinamente, sem influência do Estado, e assim não haveria causa que indicasse a imprescritibilidade em virtude de os fatos não se enquadrarem no status de crime contra a humanidade.
No recurso apresentado ao STJ, o Ministério Público alegou que os delitos descritos na acusação se enquadram no conceito jurídico-penal de crime contra a humanidade (lesa-humanidade) e pediu o reconhecimento de sua imprescritibilidade, em observância às normas de direito internacional.
Jus cogens
Para Reynaldo Soares da Fonseca, ainda que o ordenamento jurídico brasileiro admita uma norma internacional como jus cogens – normativo cuja modificação só pode ser realizada por norma posterior de direito internacional de mesma natureza –, essa norma terá status infraconstitucional, devendo, portanto, se harmonizar com a Constituição Federal. Assim, segundo ele, não é possível caracterizar uma conduta praticada no Brasil como crime contra a humanidade sem que exista na legislação brasileira a tipificação de tal crime.
O ministro observou ainda que o Brasil não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (1968), não internalizando o tratado internacional. Mesmo que fosse admitida jus cogens, a norma internacional deveria estar em harmonia com os princípios e as garantias constitucionais – o que, segundo Reynaldo, não aconteceu.
“A admissão da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade como jus cogens, com incidência sobre fatos anteriores à própria promulgação da Constituição Federal de 1988, mesmo sem adesão do Brasil, poderia revelar verdadeira afronta à própria soberania estatal e à supremacia da Constituição da República. Assim, a meu ver, apenas o Supremo Tribunal Federal poderia reconhecer referida incidência”, ressaltou.
Tipificação
“Não é possível, a meu ver, utilizar a tipificação de crime contra a humanidade trazida no Estatuto de Roma, na presente hipótese, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da legalidade e da irretroatividade”, afirmou Reynaldo Soares da Fonseca.
Para o ministro, também não seria possível utilizar, no caso do atentado do Riocentro, a tipificação de crime contra a humanidade prevista no Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional, este sim internalizado pelo ordenamento brasileiro.
Em caso semelhante, lembrou o ministro, o Supremo Tribunal Federal, diante da ausência de uma legislação interna que tipificasse os crimes contra a humanidade, concluiu não ser possível utilizar tipo penal descrito em tratado internacional para tipificar condutas em âmbito interno, “sob pena de se violar o princípio da legalidade, segundo o qual ‘não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, XXXIX, da CF)”.
Imprescritibilidade
O ministro explicou que a Constituição, ao estabelecer um amplo rol de direitos e garantias fundamentais aos indivíduos, teve como objetivo garantir que os cidadãos não sejam vítimas do arbítrio do poder coercitivo do Estado.
“Não se coaduna, igualmente, com a ordem constitucional vigente, admitir a paralisação da eficácia da norma que disciplina a prescrição, com o objetivo de tornar imprescritíveis crimes contra a humanidade, por se tratar de norma de direito penal que demanda, da mesma forma, a existência de lei em sentido formal.”
Para Reynaldo, o não reconhecimento da imprescritibilidade dos crimes narrados na denúncia não diminui o compromisso do Brasil com os direitos humanos.
“Com efeito, a punição dos denunciados, quase 40 anos após os fatos, não restabelece os direitos humanos supostamente violados, além de violar outros direitos fundamentais, de igual magnitude, em completa afronta a princípios constitucionais caros à República Federativa do Brasil (segurança jurídica, coisa julgada material, legalidade, irretroatividade etc.)”, afirmou.
Direitos humanos
Segundo o ministro, os fatos ocorridos no Riocentro em 1981 foram contemplados pela anistia trazida no artigo 4º, parágrafo 1º, da Emenda Constitucional 26/1985, promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte.
Reynaldo Soares da Fonseca lembrou que o Brasil, voluntariamente, submeteu-se à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tendo ratificado em 1998 a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória prevista no artigo 62 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Porém, observou que, no tocante aos tratados internacionais, as decisões envolvendo a Corte Interamericana de Direitos Humanos não prescindem da devida harmonização com o ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de comprometer a soberania nacional.
“Com efeito, a soberania é fundamento da República Federativa do Brasil e justifica a supremacia da Constituição Federal na ordem interna. Dessa forma, o cumprimento das decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos não pode afrontar a Constituição, motivo pelo qual se faz mister sua harmonização, sob pena de se subverter nosso próprio ordenamento, negando validade às decisões do Supremo Tribunal Federal, em observância a decisões internacionais”, destacou.
Lesa-humanidade
No voto que abriu o julgamento, o ministro relator, Rogerio Schietti Cruz, considerou que a tentativa de atentado a bomba no Riocentro configurou crime contra a humanidade, sendo, portanto, imprescritível – o que possibilitaria a retomada da ação penal contra os militares.
Para Schietti, o Brasil se submete a normas de direito penal internacional que preveem a imprescritibilidade de delitos graves ocorridos em períodos de exceção, além de ter sido condenado em julgamentos recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos por episódios ocorridos durante a ditadura.
O ministro entendeu que as características atribuídas ao atentado – participação de agentes estatais, ações sistemáticas para impedir a redemocratização do Brasil e o potencial de lesão para a população civil – justificariam a caracterização do episódio como crime de lesa-humanidade.
Admissibilidade
No voto apresentado à Terceira Seção, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca considerou que não foram preenchidos os requisitos de admissibilidade por fundamentação deficiente (Súmula 284 do STF) e impossibilidade de revolvimento das provas do caso (Súmula 7 do STJ).
“Inviável, outrossim, aferir se os fatos narrados se inserem na categoria de crime contra a humanidade, uma vez que o recorrente não apontou violação a dispositivo legal, ou mesmo supralegal, que albergue referida discussão. Ademais, desconstituir a conclusão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que possui amplo espectro de cognição dos fatos e provas juntadas aos autos, demandaria o revolvimento fático-probatório, o qual é vedado na via eleita, nos termos do enunciado 7 da súmula desta corte.”
O ministro disse ainda que o STJ não pode ser considerado uma terceira instância recursal, já que sua missão constitucional é a uniformização da jurisprudência, e não a aferição da justiça da avaliação dos fatos feita pelo TRF2.
Votaram com o ministro Reynaldo os ministros Laurita Vaz, Jorge Mussi, Antonio Saldanha Palheiro e Joel Ilan Paciornik. Ficaram vencidos os ministros Rogerio Schietti e Sebastião Reis Júnior.
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