O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) vai completar 30 anos em julho de 2020 e é considerado um marco de como os campos jurídico e político encaram e preservam os direitos das pessoas com menos de 18 anos. Do pré-natal à maioridade, a norma prevê proteção integral, cuidando de áreas como educação, segurança, alimentação e muitas outras.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai realizar na próxima quinta-feira (10) um evento para marcar o aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança, que também está completando 30 anos (adotada pela ONU em 1989, ela entrou em vigor e foi ratificada pelo Brasil em 1990).

Em suas três décadas de existência, o STJ – cuja instalação se deu em 7 de abril de 1989 – tem criado jurisprudência essencial para a adequada aplicação dos dispositivos do ECA e de outros instrumentos jurídicos de proteção às crianças e aos adolescentes.

Proteção efetiva

Sobre o ECA, o ministro Joel Ilan Paciornik destacou que é preciso haver uma proteção de fato e de direito para crianças e adolescentes. “De nada adiantará todo o aparato judicial preventivo se este não é aplicado de forma efetiva”, observou o ministro. O estatuto seria um mecanismo essencial para essa proteção. Já o ministro Napoleão Nunes Maia Filho destacou o fato de que a norma não determina responsabilidades só à família, mas também prescreve à sociedade e ao Estado o dever de, solidariamente, assegurar à criança e ao adolescente os direitos fundamentais com absoluta prioridade.

O advogado Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo (Condepe) e do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, afirmou que o Brasil tem uma das legislações mais modernas para a defesa de crianças e adolescentes, que introduziu muitos avanços: “O ECA ajudou a diminuir a mortalidade infantil, criou os conselhos tutelares e as varas da infância, e deu a base para os programas de combate à exploração sexual e ao trabalho infantil.”

Internação adequada

Porém, Ariel de Castro destacou que ainda há muito a ser feito, pois muitos estados não têm a estrutura necessária para a proteção dos mais jovens. “A atuação de tribunais como o STJ é particularmente importante nessa área, pois garante que a internação de menores seja adequada”, asseverou. Um exemplo foi o voto do ministro Herman Benjamin no Recurso Especial (REsp) 1.653.359, que tratou da intervenção por irregularidades em um centro de internação em Belo Horizonte.

Em liminar, o juiz da Vara da Infância e da Juventude determinou o afastamento do gestor e a apresentação de um plano para sanear as irregularidades em 30 dias. Houve recurso afirmando que a apuração de irregularidades deveria passar pelo trâmite do processo administrativo, e a liminar foi cassada. No recurso ao STJ, foi pedido o restabelecimento da liminar.

O ministro Herman Benjamin observou que as irregularidades citadas nos autos eram muito graves, como a existência de esgoto a céu aberto, infestação de ratos e o acúmulo de lixo. Acrescentou que os dispositivos legais para a garantia de direitos do ECA não podem ser encarados como uma abstração dos princípios e das finalidades para os quais foram criados, e o artigo 193 do estatuto dá ao juiz da vara de infância o poder de determinar prazo para a correção de irregularidades.

Sujeitos de direitos

A educação foi um ponto muito enfatizado na elaboração do ECA – e é o de maior importância, para grande parte dos especialistas. O mestre em pedagogia, consultor e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB) José Ivaldo Araújo de Lucena destacou que houve uma mudança na concepção de criança e adolescentes.

“Havia uma perspectiva caritativa ou assistencialista. Depois do ECA, os mais jovens são sujeitos de direitos, algo já previsto na Constituição Federal de 1988. O estatuto e a educação são de crucial importância no processo de identificação e intervenção efetiva em situações de violação desses direitos”, observou.

Lucena declarou ainda que a legislação reconhece que crianças e jovens passam por um processo complexo de desenvolvimento fisiológico, emocional e social, e necessitam de proteção e garantias para obter educação.

Um exemplo é a garantia dada a crianças de serem matriculadas em creches próximas à residência, assim como a obrigação estatal de prover esse serviço, como apontado pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho no REsp 1.697.904. O ministro destacou que há um direito subjetivo à educação e, portanto, não há discricionariedade da administração pública para negá-lo.

Já a ministra Assusete Magalhães observou, ao julgar agravo interno no Agravo em Recurso Especial (AREsp) 1.223.450, que esse tema foi considerado de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas o sobrestamento de um recurso especial não impede o provimento de eventual medida de urgência se são preenchidos os seus requisitos legais.

Garantindo direitos

Além da educação, a saúde e a própria subsistência das pessoas que não atingiram a maioridade foram assuntos de outros recursos no STJ. O professor José Ivaldo de Lucena assinalou que, do ponto de vista do desenvolvimento cerebral, áreas responsáveis por controle de impulsos, emoção, tomadas de decisão e sexualidade podem só estar maduras aos 25 anos. “Essa situação especial deve ser protegida no âmbito das políticas sociais voltadas para a criança e o adolescente.”

Essa proteção aparece no voto do ministro Herman Benjamin no REsp 1.726.973, que considerou que o ECA dá à criança e ao adolescente sob guarda uma condição de dependente para todos os efeitos, incluindo-se os previdenciários. No caso, um avô entrou com mandado de segurança para que o neto sob sua guarda tivesse o direito de assistência à saúde. No julgamento do caso pelo STJ, o ministro reconheceu o direito à assistência.

Menores sob guarda também fazem jus a pensão. No seu voto no REsp 1.411.258, o ministro Napoleão considerou que, embora a Lei 9.528/1997 tenha excluído quem está sob guarda do rol dos dependentes, isso não muda o fato de haver uma dependência financeira. “Do ponto de vista ideológico, seria um retrocesso normativo incompatível com as diretrizes constitucionais de isonomia e de ampla e prioritária proteção à criança e ao adolescente”, acrescentou.

Crimes sexuais

O ECA é um instrumento de proteção do Estado para os mais jovens. O advogado Ariel de Castro Alves informou que, mesmo com a melhoria de vários índices nos últimos anos, ainda há 3,5 milhões de brasileiros na faixa de 4 a 16 anos fora da escola, muitos deles em situação de rua e explorados no trabalho infantil ou sexualmente. Segundo o advogado, a prevenção por meio de políticas sociais custa menos que a repressão.

“As mortes violentas de crianças e jovens aumentaram nos últimos anos, chegando a 29 por mil em 2017”, alertou. Problemas com a exploração sexual também têm crescido. As decisões do STJ vêm ajudando a combater essa realidade.

Em recurso julgado pela Sexta Turma em junho deste ano (processo em segredo de Justiça), o ministro Rogerio Schietti Cruz invocou o princípio da proteção integral ao julgar um caso de estupro de vulnerável, cometido contra uma menina com menos de 14 anos. Na ação, o réu alegou que o ato não havia sido consumado, o que descaracterizaria o estupro – argumento aceito nas instâncias ordinárias.

No seu voto, o ministro deu provimento ao recurso para reconhecer que, mesmo naquelas circunstâncias, ficou configurado o crime previsto no artigo 217-A do Código Penal – ou seja, manter relação sexual ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Condenado o réu no STJ, o processo foi devolvido ao tribunal de origem para o cálculo da pena.

Em julgamento de agosto de 2017, na Quinta Turma (processo em segredo), o ministro Joel Ilan Paciornik asseverou que uma suposta liberdade de escolha da vítima ou o não tolhimento de sua liberdade não descaracterizam a exploração sexual de crianças e adolescentes. Paciornik ponderou que, segundo a jurisprudência firmada pelo STJ, a aparente concordância do menor com os atos sexuais não tem o mesmo valor dado à de quem já atingiu a vida adulta.

Adoção à brasileira

O combate a irregularidades como a chamada a “adoção à brasileira” (quando se registra o filho de outro como se fosse próprio, com conhecimento disso) é outra marca da atuação do Tribunal da Cidadania. No Recurso em Habeas Corpus (RHC) 506.899, o ministro Moura Ribeiro afirmou que, em casos nos quais ainda não estejam estabelecidos laços afetivos entre as crianças e os pretensos guardiães, é possível abrigar o menor em instituição, até ele ser colocado em uma família registrada legalmente no cadastro de adoção.

Segundo o magistrado, a jurisprudência considera possível permanecer com a família que praticou a adoção irregular – se não houver riscos evidentes de danos físicos e psíquicos e já tiverem sido constituídos laços afetivos. Mas, na situação analisada, a convivência foi de apenas quatro meses.

Para o professor Lucena, o ECA é a materialização de décadas de discussões e o resultado de uma luta por direitos iniciada com a redemocratização. “Com ele, temos uma ferramenta para o atendimento de suas necessidades, considerado seu processo de desenvolvimento no âmbito das suas famílias e da sociedade, numa perspectiva cidadã para as crianças e adolescentes”, declarou. O que é necessário, segundo ele, é implementar de fato o estatuto.

O advogado Ariel de Castro Alves afirmou que a lei ainda é, em grande parte, desrespeitada. “Muitos avanços na garantia dos direitos previstos no ECA decorreram de decisões judiciais, especialmente do STJ”, completou.

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