Por unanimidade, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que, na hipótese de ação civil pública que versa sobre questão de grande complexidade jurídica e social, não são admissíveis a decisão de improcedência liminar ou o julgamento antecipado do pedido, especialmente quando, a despeito da repetitividade da matéria, não há tese pacificada pelos tribunais.

O Ministério Público do Ceará ajuizou dez ações civis públicas contra um município para que dez diferentes menores, em acolhimento institucional por período superior ao teto fixado em lei, fossem encaminhados a programa de acolhimento familiar e recebessem reparação pelos danos morais decorrentes do abrigamento por tempo excessivo, que teria sido causado pela omissão do ente público.

Com base no artigo 332, III, do Código de Processo Civil de 2015, a sentença, liminarmente, julgou o pedido improcedente, sob o argumento de que o problema do acolhimento institucional por período superior a dois anos (18 meses a partir de 2017) envolve, por exemplo, falta de recursos do poder público, desestruturação das famílias, excesso de crianças para adoção e desinteresse das pessoas em adotar crianças mais velhas.

Para o juiz, o município não poderia ser responsabilizado por todos esses problemas de índole social e estrutural. O Tribunal de Justiça do Ceará confirmou a sentença.

Ao recorrer ao STJ, o Ministério Público alegou violação ao artigo 332 do novo CPC, sob o argumento de que a hipótese em exame não envolve tese firmada em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) ou Incidente de Assunção de Competência (IAC) – como exigido pelo inciso III do dispositivo –, razão pela qual não poderia ter havido julgamento de improcedência liminar do pedido.

Precedentes qualif​icados

De acordo com a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, o CPC/2015 não admite o julgamento de improcedência liminar do pedido com base apenas no entendimento do juízo sobre questões repetitivas.

É necessário, segundo ela, que tenha havido a prévia pacificação da questão jurídica controvertida no âmbito dos tribunais, materializada em precedentes como súmula ou recurso repetitivo do Supremo Tribunal Federal ou do STJ, súmula do Tribunal de Justiça sobre direito local, IRDR ou IAC.

“Por se tratar de regra que limita o pleno exercício de direitos fundamentais de índole processual, em especial o contraditório e a ampla defesa, as hipóteses autorizadoras do julgamento de improcedência liminar do pedido devem ser interpretadas restritivamente, não se podendo dar a elas amplitude maior do que aquela textualmente indicada pelo legislador no artigo 332 do novo CPC”, esclareceu.

Ação civil púb​​​lica

A ministra destacou que, para o juiz resolver o mérito liminarmente e em favor do réu, ou até mesmo para haver o julgamento antecipado do mérito imediatamente após a citação do réu, é indispensável que a causa não exija ampla dilação probatória – situação diferente do que costuma ocorrer com a ação civil pública.

“Os litígios de natureza estrutural, de que é exemplo a ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima do teto previsto em lei, ordinariamente revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual”, observou.

Segundo Nancy Andrighi, para a adequada resolução dos litígios estruturais, é preciso que a decisão de mérito seja construída em ambiente colaborativo e democrático, mediante a efetiva compreensão, participação e consideração dos fatos e argumentos, das possibilidades e limitações do Estado em relação aos anseios da sociedade civil adequadamente representada no processo.

Mini​mizar danos

Para a ministra, embora o Brasil ainda não tenha o arcabouço jurídico adequado para lidar corretamente com as ações que demandam providências estruturantes e concertadas, não se pode negar a tutela jurisdicional minimamente adequada a um litígio de natureza estrutural.

Segundo Nancy Andrighi, é “inviável” que conflitos como o do caso em julgamento – “que revelam as mais profundas e duras mazelas sociais e as mais sombrias faces dos excluídos” – sejam resolvidos de modo liminar ou antecipado, sem exauriente instrução e sem participação coletiva, “ao simples fundamento de que o Estado não reuniria as condições necessárias para a implementação de políticas públicas e ações destinadas à resolução, ou ao menos à minimização, dos danos decorrentes do acolhimento institucional de menores por período superior àquele estipulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente”.

Ao dar provimento ao recurso especial do Ministério Público, a Terceira Turma anulou o processo desde a citação e determinou que a causa seja regularmente instruída e rejulgada – com a adoção, pelo juízo de primeiro grau, de medidas de adaptação procedimental e de exaurimento instrutório apropriadas à hipótese.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

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