O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 1º, preconiza a doutrina da proteção integral e impõe a observância do melhor interesse do menor. Esse princípio, que orienta tanto o legislador quanto o aplicador da lei, estabelece a primazia das necessidades infanto-juvenis como critério de interpretação da norma jurídica, ou mesmo como forma de elaboração de políticas e solução de futuras demandas.
Segundo a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Nancy Andrighi, nas ações que envolvem interesse da infância e da juventude, não são os direitos dos pais ou responsáveis que devem ser observados. “É a criança que deve ter assegurado o direito de ser cuidada pelos pais ou, ainda, quando esses não manifestam interesse ou condições para tanto, pela família substituta, tudo conforme balizas definidas no artigo 227 da Constituição Federal, que seguem estabelecidas nos artigos 3º, 4º e 5º do ECA“, afirmou.
A jurisprudência do tribunal se fundou tanto na doutrina da proteção integral como no princípio do melhor interesse de forma ampla, tendo como norte a prioridade absoluta à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, protegendo-os ora de mudanças abruptas em sua rotina e condições de vida, ora de situações de violência – como destacou o ministro Marco Buzzi.
Competência para julgar medidas protetivas
Em recente julgado, a Segunda Seção estabeleceu a competência do juízo da localidade onde uma adolescente se encontrava – e não o do domicílio de sua guardiã legal – para examinar medidas protetivas propostas pelo Ministério Público estadual.
A menor estava sob a guarda legal de uma mulher, em uma cidade do Paraná, desde a morte de sua mãe biológica, quando tinha quatro meses de idade. Devido à denúncia de violência física e psicológica por parte da guardiã, o Ministério Público estadual ajuizou medida protetiva em favor da adolescente, tendo o juízo da localidade determinado o acolhimento emergencial em abrigo municipal.
Em menos de um mês, a adolescente fugiu e se abrigou com parentes biológicos maternos residentes no Rio Grande do Sul – o que levou o juízo do Paraná a declinar da competência para julgar a medida protetiva. O juízo da cidade gaúcha, por sua vez, suscitou o conflito de competência perante o STJ, ao argumento de que o artigo 147, incisos I e II, do ECA estabelece que o foro competente para apreciar e julgar medidas, ações e procedimentos que tutelam interesses, direitos e garantias legais é determinado pelo domicílio dos pais ou responsáveis.
O relator, ministro Marco Buzzi, lembrou que a orientação pacífica do colegiado é no sentido de que, em se tratando de questionamentos acerca da guarda, prevalecerá a competência do foro da comarca daquele que detém a guarda legal da criança ou do adolescente (Súmula 383).
No entanto, o ministro observou que o caso dizia respeito à competência para julgar medida protetiva em favor de adolescente em situação de risco, e não à discussão sobre guarda legal. O magistrado destacou que, em situações semelhantes, o tribunal considerou mais adequada a declaração de competência do juízo do local onde se encontrava o menor, uma vez que, pela proximidade, seria possível atender de maneira mais eficaz aos objetivos do ECA, bem como entregar a prestação jurisdicional de forma rápida e efetiva.
“Na resolução de conflitos que versam sobre o atendimento das necessidades de crianças e adolescentes, o norte hermenêutico deve ser sempre o interesse do menor”, afirmou o relator. Segundo ele, tendo em vista esse princípio e ainda o princípio do juízo imediato (artigo 147 do ECA), a fixação da competência no juízo que tem a possibilidade de interação mais próxima com o menor e seus responsáveis viabiliza a concretização dos objetivos traçados na lei.
Ação de afastamento familiar e ação de guarda
Em 2020, a Terceira Turma definiu: mesmo que a sentença em ação de afastamento de convívio familiar transite em julgado, com a determinação de acolhimento institucional do menor, é possível o ajuizamento de ação de guarda por quem pretende reavê-la.
O colegiado deu provimento ao recurso de um casal para determinar o prosseguimento da ação de guarda ajuizada em abril de 2018, na qual pretendiam reaver a guarda que exerciam irregularmente sobre uma criança no período de 2014 a 2016 – quando o Ministério Público obteve tutela antecipatória em ação de afastamento de convívio familiar para o acolhimento institucional da menor.
A ação de guarda foi extinta. O Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que o casal careceria de interesse processual, na modalidade utilidade, para rediscutir as mesmas questões que já haviam sido objeto de decisão na ação de afastamento.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que as ações de guarda e de afastamento do convívio familiar têm pretensões ambivalentes: na primeira, pretende-se exercer o direito de proteção da pessoa dos filhos (guarda sob a ótica do poder familiar) ou de quem, em situação de risco, demande cuidados especiais (guarda sob a ótica assistencial); na segunda, pretende-se a cessação ou a modificação da guarda em razão de risco para a pessoa que deve ser preservada.
A ministra verificou que a sentença de mérito da ação de afastamento de convívio familiar foi proferida em 2016 (quando a menor tinha menos de dois anos, logo após o seu albergamento provisório) e considerou desnecessária, naquele momento, a produção de provas sobre as circunstâncias da entrega da criança e da tentativa de adoção à brasileira.
Entretanto, afirmou, tendo sido a ação de guarda ajuizada após um tempo considerável, em 2018, e com base em causas de pedir distintas e em possíveis modificações fáticas, “é absolutamente inadequado, diante desse novo possível cenário, opor a coisa julgada que se formou na ação de afastamento do convívio familiar aos recorrentes, que têm o direito de ver as novas questões por eles suscitadas examinadas em seu mérito na ação de guarda”.
Segundo a relatora, quanto ao entendimento da sentença que julgou procedente o pedido de afastamento do convívio familiar, de que seria juridicamente impossível reconhecer a filiação socioafetiva que tenha em sua origem uma adoção à brasileira, não há impedimento para que a questão seja examinada na ação de guarda. Por mais relevantes que sejam os motivos da decisão – destacou Nancy Andrighi –, estes não fazem coisa julgada, como expressamente estabelece o artigo 504, I, do Código de Processo Civil.
Adoção à brasileira, um problema frequente
Um dos temas mais sensíveis e frequentes que chegam ao STJ, envolvendo crianças e adolescentes, é a adoção à brasileira. As turmas de direito privado que compõem a Segunda Seção adotam o entendimento de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional, devendo ser prestigiada, sempre que possível, a sua manutenção em um ambiente de natureza familiar, desde que este se mostre confiável e seguro, capaz de recebê-lo com conforto, zelo e afeto.
Em agosto de 2020, a Quarta Turma confirmou liminar e concedeu habeas corpus para revogar a decisão que, no curso da ação de nulidade do registro civil de um bebê de um ano e seis meses, determinou o seu acolhimento institucional. O colegiado entendeu que, mesmo havendo fortes indícios de irregularidades na adoção, inclusive com suspeita de pagamento, a transferência para um abrigo não seria a solução mais recomendada; por isso, permitiu a permanência da criança com a família adotiva até a conclusão da ação de nulidade do registro.
De acordo com a ministra Isabel Gallotti, relatora, deveria prevalecer no caso o princípio do melhor interesse do menor, que conviveu desde o nascimento com a mãe registral.
A ministra relatou que a criança foi entregue de forma irregular para a mãe registral logo após o parto. A decisão de acolhimento institucional foi proferida quando ela contava com oito meses de vida. Por força de liminar deferida pela Presidência do STJ, o menor voltou ao convívio da família registral, após ter passado poucos dias no abrigo.
Segundo a ministra Gallotti, a mãe registral e sua companheira estavam inscritas no Cadastro Nacional de Adoção, e não havia menção de risco algum à integridade física e psicológica do menor. Além disso, estava comprovado no processo que a mãe biológica era uma adolescente usuária de drogas que não tinha condições nem interesse na criação do filho.
Laços socioafetivos não consolidados
Em situações excepcionais, no entanto, quando os laços socioafetivos ainda não se consolidaram, e sendo a adoção irregular, a jurisprudência recomenda o acolhimento institucional, tanto para evitar o estreitamento do vínculo afetivo quanto para resguardar a aplicação da lei. Nesse sentido, a Terceira Turma negou provimento ao recurso em habeas corpus interposto por uma mulher acusada de praticar adoção à brasileira, no qual pedia a guarda da criança.
De acordo com o processo, a mãe biológica do menor foi convencida a deixá-lo aos cuidados da filha da idosa para quem trabalhava, até resolver problemas financeiros. Algum tempo depois, foi demitida por mensagem de aplicativo e não teve o filho de volta.
A filha da idosa ajuizou ação para adotar a criança, mas o juízo de primeiro grau rejeitou o pedido por reconhecer que ela agiu de má-fé, aproveitando-se das dificuldades financeiras da mãe biológica para obter a guarda de fato. Na tentativa de evitar o recolhimento a uma instituição, a guardiã ajuizou habeas corpus no tribunal estadual, o qual foi denegado.
Para o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do recurso no STJ, as conclusões da Justiça de primeiro e segundo graus deixam clara a necessidade de afastar a criança dos cuidados da mulher que tentou praticar a adoção irregular. O ministro também ponderou que o imediato acolhimento do menor em abrigo, na cidade onde residia sua mãe, poderia oferecer a proteção integral e viabilizar a reaproximação gradativa dos dois.
Cuidado maior ainda na pandemia
A pandemia de Covid-19 adicionou um novo componente aos casos de adoção ou acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Ao julgar um pedido de habeas corpus, a Terceira Turma concluiu que a ameaça da doença era mais uma razão para manter a criança com a família que cuidava dela desde o nascimento – pelo menos até a conclusão do processo de adoção.
Dessa forma, o colegiado concedeu o habeas corpus para permitir à família substituta acolher novamente o menor, que havia sido internado em abrigo após decisão judicial fundamentada na tese de que o casal buscava burlar o procedimento de adoção legalmente previsto, incorrendo na prática de adoção à brasileira.
A família substituta alegou não se tratar de adoção à brasileira, tendo em vista as suas tentativas de regularizar a adoção do menor. E apontou a fragilidade pulmonar da criança, o que a tornaria mais vulnerável diante dos riscos de contaminação pelo novo coronavírus caso permanecesse em abrigo. Ao STJ, pediram a manutenção da criança na família até o julgamento final de todas as ações judiciais relacionadas ao caso.
O relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que a convivência familiar é direito fundamental das crianças e adolescentes, previsto pela Constituição de 1988, sendo que “a afetividade, no âmago familiar, é tão ou mais importante do que a consanguinidade”.
Ele considerou ainda que, em virtude da pandemia de Covid-19, é preferível manter a criança em uma família que a deseja como membro do que em um abrigo. Além disso, chamou atenção para as dificuldades que envolvem o procedimento de adoção no Brasil, que é “burocrático e demorado”.
Em seu voto, Cueva afirmou que o papel do Judiciário é aferir, a cada caso, como se realizará o bem-estar de crianças e adolescentes entregues por familiares, informalmente, aos cuidados de padrinhos ou terceiros interessados em exercer o poder familiar – o que, notoriamente, burla o cadastro e pode estimular práticas dissimuladas e criminosas, a exemplo da conduta tipificada no artigo 242 do Código Penal.
“O destino dessas crianças acaba sendo definido a cada julgamento, a partir de premissas fáticas e da sensibilidade do magistrado”, declarou.
Indenização após fracasso da adoção
Em maio de 2021, a Terceira Turma reconheceu a uma mulher o direito de ser indenizada em R$ 5 mil pelo casal que a adotou ainda na infância e depois, quando ela já estava na adolescência, desistiu de levar adiante a adoção e praticou atos que acabaram resultando na destituição do poder familiar.
Para o colegiado, apesar de não se descartar a falha do Estado no processo de concessão e acompanhamento da adoção, não é possível afastar a responsabilidade civil dos pais adotivos, os quais criaram uma situação propícia à propositura da ação de destituição do poder familiar pelo Ministério Público, cuja consequência foi o retorno da jovem, então com 14 anos, ao acolhimento institucional.
“O filho decorrente da adoção não é uma espécie de produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido se se constatar a existência de vícios ocultos”, apontou a ministra Nancy Andrighi, no voto que foi seguido pela maioria da turma.
A criança – que já vinha de destituição familiar anterior – foi adotada aos nove anos de idade, após longo período em acolhimento institucional, por um casal com 55 e 85 anos. A convivência na nova família foi marcada por conflitos.
Apesar de ressaltar a importância do trabalho das instituições estatais no sistema de adoção, como o Ministério Público, a ministra apontou que, no caso dos autos, era perceptível a inaptidão dos adotantes – quadro que, no entanto, só foi reconhecido após a conclusão da adoção. Caso não tivessem ocorrido falhas estatais sucessivas, ponderou, a criança certamente não seria encaminhada a uma família imprópria para recebê-la.
Os números dos processos citados não são divulgados em razão de segredo judicial.